top of page

Tradição

  • Foto do escritor: Vanda Paulino
    Vanda Paulino
  • 1 de nov. de 2021
  • 3 min de leitura

Mel, nozes e leite. Eram as três variedades de broas que a minha avó comumemente fazia para o primeiro dia de Novembro. No meu tempo, dia de pedir o bolinho. Os sacos de pano de remendos, uma espécie de patchwork dos tempos antigos, saíam do fundo da gaveta para dar vida à tradição. Quanto maior o tamanho, maior a devoção no pedido. Se o tempo fosse nosso companheiro, era expectável uma boa colheita. Além de batermos em todas as portas, a vergonha não se levava presa ao pedirmos a quem passava na rua. À porta das casas éramos saudados pelas mulheres. Desconfio que não existisse nenhuma que não desse aos braços, na véspera, para ter um alguidar cheio de broas à espera de o ver diminuído em altura no final do dia. Rezávamos para que não chovesse. Cobrir o nosso tesouro com chapéu de chuva e ter de regressar mais cedo a casa quando a chuva dobrava o tamanho não era algo que nos deslumbrasse, apenas um saco de pano cheio teria esse efeito. Regressávamos com uma sensação de triunfo. E para isso, S.Pedro tinha a obrigação de nos ajudar. Éramos crianças felizes. Sem dúvida alguma. Naquela altura não havia espaço para questionamentos. Éramos apenas crianças. Não sabíamos o que era um telemóvel, internet, redes sociais. Por vezes alguém nos fotografava na nossa demanda, mas a probabilidade era bastante reduzida. Também não andávamos porta a porta mascarados. Pelo contrário, na maioria das vezes, as nossas mães vestiam-nos o "fato de domingo" para irmos apresentáveis. As melhores recordações dessas datas não estão documentadas em papel, apenas na memória. O calor do forno a lenha, a massa crua rapada à rebelia da avó, o beijo com cheiro a colónia e um saco cheio. Não só de broas, que uns caramelos de fruta e umas moedinhas ainda faziam parte do conteúdo, misturados com o açúcar branco que limpávamos dos dedos com a língua. Sim, não sabíamos o que eram germes. Dinheiro, broas e rebuçados estavam todos no mesmo patamar de igualdade. Todos engordavam. Uns, a barriga, outros, o mealheiro. As moedas, habitualmente eram os homens que atiravam para dentro do saco aberto. Se o dia estivesse bom, sentados na esplanada, também não nos escapavam. Cada um com a sua tarefa. As mulheres faziam broas, os homens abriam a carteira.

Mas o tempo passa, as tradições vão-se rompendo com o tempo. As crianças vibram mais com máscaras ao som de Doces e Travessuras. Os sacos de pano antigos já não têm grande utilidade, a não ser na ida ao supermercado, que agora não há saco que não se pague e dois dias de "carnaval" por ano, soa bem melhor do que gozar apenas um. Escolhem-se as melhores fotos e inveja-se a melhor mesa de comida embruxada, publicada nas redes sociais. Caso para dizer, a tradição já não é o que era. Ou talvez até seja. Pensando bem, antigamente já existiam bruxas, aquelas velhinhas que víamos no nosso peditório, de pano na cabeça, com uma valente verruga no queixo, cheia de pêlo ou com um grande bigode, fruto da inexistência da palavra esteticista no seu dicionário. Se alguém não contribuisse para atestar o saco também ficava na nossa lista de partidas a colocar em prática. Em retrospectiva, já vivíamos o Halloween dos tempos modernos, embora fossemos mais espertos. Vestíamo-nos de anjos, recolhíamos doces, fugíamos das bruxas e protestávamos contra quem não contribuía para nos fazer crescer o "pote de ouro". E não documentávamos o nosso rasto. Sim, éramos crianças felizes. Mesmo sem qualquer suporte digital. Apenas com a travessura no olhar e os dedos lambidos do açúcar branco polvilhado à superfície do nosso tesouro. Sim, éramos crianças muito felizes.

ree

 
 
 

Comments


Post: Blog2 Post
  • Instagram
  • Instagram

©2021 por Vanda de Deus Paulino. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page