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Regências e oposições

  • Foto do escritor: Vanda Paulino
    Vanda Paulino
  • 8 de ago. de 2021
  • 2 min de leitura

A memória é traiçoeira. Perdemos o fio condutor das ações outrora praticadas. Recordamos momentos, apenas pequenos fragmentos esbatidos de algo que nos imprimiu algum tipo de sentimento. Às vezes são esquecidas durante anos e quando acionado determinado gatilho, surgem espontaneamente. Conseguimos nesse momento identificar as cores, os cheiros e as emoções sentidas naquele momento. O gatilho surgiu de madrugada. Abri os olhos ao som de um motor de rega, metaforizando o ronronar da Maya. Adormeço e acordo tantas vezes ao som do seu ronronar e nunca havia regressado àquele momento. Hoje foi o dia. Dizem @s entendidos em astros que existe um turbilhão de emoções revoltadas nos céus. Desconheço as regências e oposições dos planetas, mas acredito que de uma forma ou de outra, andamos em coletivo, a afirmar a nossa posição no mundo e a combater os nossos demónios. Se nuns dias somos luz, noutros somos sombra. A obscuridão, tão interior e tão malévola habita em todos nós. E a luz é demasiadas vezes ofuscada pelo carácter desumano do ser. Numa luta entre o caos e a luminosidade, reconhecemos que é a experiência do primeiro, sempre iminente, que torna possível a instituição da ordem. Talvez seja este o motivo para atualmente buscarmos tanto conhecimento. Nunca se falou tanto em amor próprio, autoestima, autocuidado, compaixão e empatia como agora. Sermos gentis com o nosso lado sombra, acolhê-lo e trabalhá-lo pode ser penoso mas em última instância leva-nos a um estado de clareza e serenidade. Hoje fui buscar um pedaço dessa clarividência. Acordei na noite. O motor de rega ouve-se ao fundo, confundido no coaxar das rãs e no canto do mocho. A pilha é demasiado fraca mas impede de tropeçar nos torrões de terra. A água corre pelos regos. A vitalidade conferida nas trocas entre xilema e floema traduzem-se em imponência. Sou metade daquelas plantas. Na noite têm um ar grotesco, as folhas grandes e ligeiramente caídas lembram-me vários braços. Tenho de dobrar a cabeça para trás para ver as suas copas. O meu pai grita pela luz. Na obscuridade não consegue mudar a rega. Percorremos as carreiras do milho na penumbra. Nunca nos demoramos muito tempo aqui, apenas o suficiente para garantir que o calor não dizime uma seara inteira. A noite adensa-se e eu sou uma criança à muito esquecida da hora de deitar. Regressamos ao carro. Vou cheia de mim. De orgulho. Em crianças vivemos um sentimento de grandeza. De nós. Somos corajosos, invencíveis e destemidos. Naquela noite, como em muitas outras, era eu a protetora daquele adulto. A companhia escolhida para o pai não deambular sozinho na noite. Em criança emanamos uma luz tão brilhante que qualquer pilha ou luar subtrai intensidade. Somos tão fortes que sentimos ser nós a propulsão daquele motor a trabalhar.

Mas o motor de rega pára e já não estou na fazenda. A Maya pede festas. Lambe-me os braços solicitando atenção. Continuo a ser a protetora. Continuo a ser criança. Uns dias sou luz, outros sombra. Mas esta madrugada sou novamente aquela criança. Sem medos. Corajosa. Afago-lhe o pêlo e prometo-lhe que hoje cuidarei de mim, da minha luz.

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