
Palavras sentidas e Histórias compulsivas
E quando temos saudades de nós?
Saudade. Tão nossa. Tão portuguesa. Uma antítese, tão cheia de sentido e de vazio.
Saudades do passado. Saudades da infância, de um local, da família, de um amigo perdido, de correr descalça na rua, do cheiro a bolo de maçã feito pela avó, do sabor da manteiga derretida no pão caseiro acabado de ser tirado do forno, de deglutir avidamente os figos colhidos da árvore, ainda quentes, do banho ao rio, do colo da mãe, de dar um mergulho no mar, do palpitar ribombante do coração ao avistar uma louca paixão, de correr atrás de uma criança, de andar de barco, de um abraço de quem já partiu.
O passado são dias e noites vividas. São lágrimas e sorrisos. São raivas contidas, gritos uivados, mágoas profundas. São risos assobiantes, brilhos resplandecentes. São amores perdidos, são amores encontrados. São amizades conquistadas, são amizades findadas.
Sem passado não somos nós. Sem passado não vivemos. Sem passado não aprendemos. Sem passado não teríamos Saudades. Nunca teríamos bebido da fonte preciosa da humanidade. Não viveríamos sem ela. Desidrataríamos. Afogar-nos-íamos na ausência. Ausência de nós próprios.
O passado são sentimentos, são palavras, são dores, são emoções. Somos nós. E quando temos saudades de nós? Vivemos. Carregamo-nos ao colo. Sentimo-nos, porque é dentro de nós que nos encontramos. E quando temos saudades de nós? Abraçamo-nos, porque somos passado, presente e futuro. Somos nós. Somos tudo.

Memórias
Memórias felizes. Memórias menos felizes. Todas são nossas e convergem para a nossa construção. A frase de que "as pessoas não nos pertencem, apenas as lembranças que construímos com elas" é a maior e melhor verdade da vida. Somos o excesso e o defeito daquilo que vivenciamos e, são essas experiências pelas quais temos inequivocamente de passar, que nos trazem ao presente e nos elevam ao futuro que almejamos. Durante muito tempo olhei através desta janela a história do passado e vi a minha avó do outro lado. A fazer o seu maravilhoso arroz doce polvilhado com canela ou o requentado acompanhado de peixe frito. Tinha o mesmo sorriso terno que sempre a acompanhou. Hoje a janela já não tem as marcas do passado, as rugas e saliências foram colmatadas, e a pintura descascada de outrora foi decapada e substituida por nova cor. Hoje vejo através dela a minha vida. São memórias? Sim, são memórias. Mas agora são memórias recentes e construídas por mim. As outras, guardo-as no coração.

Silêncio Ruidoso
O sol vestiu se de amarelo escarlate e pintou o céu deste final de tarde. Depois de pisar a terra castanha, ouvir o crepitar da caruma e estalar os restos de pinhas ao caminhar, sentei-me numa pedra. Não por cansaço mas por necessidade de puro comprometimento com a natureza. O seu silêncio ruidoso sufoca-me a tristeza. Não existe maior ousadia do que acalmar o desânimo com o canto dos pássaros, o som do vento a sussurrar na copa das árvores, com o doce aroma do rosmaninho e consolar os olhos comovidos com a tela gigante diante de mim. O contraste entre a terra e o céu, nos envergonhados tons de verde, nas vigorosas flores rosa e roxas, na cor barrenta da terra e no fogo ardente aos poucos desvanecido e esquecido atrás da serra, enganam a apatia e a agitação da mente. É na complacência deste silêncio ruidoso que o coração se enche de gratidão. Por mais um dia. Por mais momentos de alegria. Pela possibilidade de revisitar e criar novas memórias. Por estar viva e ter a capacidade de apreciar a graciosidade da natureza, aquela que tanta paz me traz.

Provérbios de Abril
Nunca a chuva de Abril é mau tempo, diz um dos muitos provérbios portugueses, alusivos a este mês, embora atualmente não se coadune com a nossa vivência. Depois de um Março mais quente de que há memória, Abril chegou com temperaturas negativas pela Europa e grande destruição em Portugal. Por outro lado, nódoa de Abril não há mês que a tire, a alusão metafórica mais fidedigna para descrever a forma incrível como a corrupção é absolvida no nosso país. Mas se num dia choramos os cravos vermelhos esquecidos e secos, noutro reparamos danos massivos e ajudamos desalojados assim como corremos para as esplanadas para abraçar desgostos e calibrar mentes desgastadas. Mas quando Abril chegar, tudo vai florir. E de facto não há cor que falte no horizonte. Em Abril rimos e choramos, mas sobretudo primaveramos. Com esperança.

I hope you don´t mind
Não sou dada a imaginar petas para o dia das mentiras, assim como também não aprecio o carnaval. Não gosto de vestir outra pele e também não tenho grande imaginação para inventar histórias crediveis para enganar o próximo. Como tal, se me tivessem dito há um ano atrás que hoje continuariamos protegidos por uma máscara não acreditaria ou não entenderia. Mas um ano volvido, continuamos todos nesta dança incrível, meio carnavalesca, meio doida vivendo a verdade do século mais impossível de acreditar. E é mascarada que resido nos meus dias. É mascarada que encarno o papel de tia fixolas que à beira dos quarenta ainda combina a cor das sabrinas com a cor dos brincos. Mas não é que o puto agora quando olha para mim, julga que venho de Marte ou de outro mundo longínquo, quiçá de outra galáxia e com um valente beiço grita a plenos pulmões, protestando que tal como eu também não gosta de mascarados?A mana compensa em carinho e amor. Sem saber, entende que uma das minhas linguagens é a do presente. E esse, sem querer acreditar e julgando ser mentira, quando entro em casa enche-me os olhos de água. Sim, tenho linguagem presente e não há nada mais gratificante do que ser lembrada em amor. A tristeza esconde-se bem atrás de uma máscara, mas a alegria deve ficar bem retratada. Mesmo de beiço e à distância, a vida é bem melhor com um Mateus no mundo. Obrigada mana. Seria mentira se dissesse que não vos adoro

Dia do Pai
Quando era miúda adorava dormir em casa das minhas amigas. As mães delas habitualmente aconchegavam nos a roupa quando nos deitávamos e haviam sempre beijinhos de boa noite e bom dia. Em minha casa nunca existiram esses mimos. A minha mãe fazia o papel de dois progenitores, geria as tarefas domésticas, trabalhava e educava 3 filhas com idades muito díspares, tendo de apaziguar a dor de uma adolescente com um coração partido enquanto trocava fraldas e aquecia biberões. Naquela altura eu reclamava a falta de atenção, hoje aplaudo a destreza da minha mãe em conseguir gerir as suas necessidades sem recorrer a qualquer tipo de terapia psicológica. Este ano, no dia do pai, liguei lhe para o felicitar pelo seu dia ao que ele me respondeu que não ligava importância nenhuma a isso porque o dia dele eram todos os dias. O meu pai, demasiado ausente, severamente exigente, angustiantemente teimoso é também alegremente irónico. Por entre risos alegou estar a ser escravizado pela esposa enquanto ela andava a passear pela cidade. Terminou a chamada com o seu tipico "inté" porque tinha muito que fazer. Não devo ser a primeira pessoa a sofrer de crises de criança interior desestabilizada, mas o facto é que hoje recordo de tudo com outro olhar. A mãe era o pilar, embora austero, mas sempre o pilar. O pai era o homem ausente e meio doido da casa. Talvez por isso, quando estive muito doente aos 13 anos e as noites eram verdadeiros cenários aterrorizantes era ele que as perdia comigo a tentar acalmar os meus demónios, ou quando às 2h da manhã de um dia de semana ele tenha viajado até ao Porto para aplacar a minha crise de histeria perante a existência de um rato farrusco e cinzento a cirandar na cozinha. Ou outras tantas histórias mirabolantes. Essas eram nossas porque a minha mãe, bastante mais pragmática dizia que eu tinha de aprender a desenrascar-me. Hoje pela lente da minha miopia reconheço que estes dois seres tão diferentes tentaram fazer o melhor que lhes foi possível dentro das suas limitações. O Facebook recordou me esta foto publicada há uns anos, e como não tenho uma única foto sozinha com o Paulino, a caçula também veio por acréscimo. Na realidade, se não fosse ela, certamente que o meu pai não seria um décimo daquilo em que se tornou. Continua igual a ele próprio, nem o AVC lhe dobrou o feitio, mas conseguiu estar muito mais presente. No tempo e na vida. O dia dele é hoje e todos os outros dias do ano. E cada dia mais agradeço pelas memórias que me relembram de tudo o que é importante na vida. Não haviam muitos beijos nem aconchegos, mas entre curvas e atalhos lá nos fomos entendendo nas crises e nas loucuras. Somos doidas sem dúvida. E nisso saímos ao pai!

Maternidade
Desconheço as dores de um parto, a sensação de ter um ser a crescer dentro do corpo a comprimir os órgãos e a pressionar o esterno, o inchaço dos tornozelos pelo peso carregado, a pele saturada de estrias como se fosse o brinde de inchar e esvaziar um balão de ar quente. Desconheço o peso das horas mal dormidas, das cólicas que não abrandam, do choro gritante ecoado na madrugada, das lágrimas derramadas diante a sensação de imcompletude, das brigas hormonais que confundem os neurónios e toldam o discernimento igual disputa de géneros. Desconheço a angústia quando a agulha alerta uma vacina dada, desconheço a dificuldade em gerir horários de mama, de sestas ou de banhos com a rotina de casa, ou a complexidade de tempo para escovar o cabelo ou trocar de roupa. Mas reconheço a felicidade ainda que as horas de sono não se prolonguem além de uma hora, o cabelo não esteja lavado ou a melhor roupa usada tenha apenas dois requisitos, ser prática e confortável. Reconheço que embora o corpo sofra imensas transformações e a mente esteja demasiado turva, a alegria das conquistas diárias suplanta as dificuldades. Desconheço as dores de um parto mas reconheço a dor do amor. Aquele que germina lentamente até ser legitimamente declarado assegurado e consolidado. O carinho, o apego e a alegria entre mãe e filho ressoa igual a uma explosão hormonal. O amor, o sentimento de bem estar e o prazer estão de mãos dadas.
A lente e o filtro são meus, mas a química é deles.

Solidão
A solidão veste preto, usa cabelos grisalhos e pele sulcada pela passagem do tempo. Arrasta-se pelas ruas da cidade sentindo-se amargurada. Suspira diante a terra seca e molhada, diante o sol e a lua, diante a vida e a morte. A solidão são tristes lágrimas derramadas, tristes lágrimas contidas. É o abandono, a rejeição, a desesperança e o ressentimento quando se exprime na dificuldade em deglutir emoções. É o lamento amorfo pelo vazio, consciente ou inconsciente, na separação do eu. Mas a solidão no seu estado uno, nutrida pela compaixão e pela essência do ser, no seu estado mais puro de deleite e prazer, é paz. Porque todo o ser humano, que se ama incondicionalmente, nunca está só, mas sim, docemente abençoado.

Na margem do passado
Maria acordou com falta de ar. Os lábios secos e os cabelos colados na testa indicavam o ambiente quente que se fazia sentir dentro do seu quarto. Embora a portada de vidro tivesse ficado aberta durante a noite, permitindo a circulação da brisa noturna no interior da divisão, a temperatura no interior da mesma denunciava o calor da estação. Os pais construíram uma enorme casa para albergar uma grande família. Queriam contribuir para as gerações vindouras, no entanto, não eram tão hábeis a gerir dinheiro para concluir as obras em casa tal como o eram para gerar filhas.
Maria era a irmã do meio e tal como o pai sempre lhe dissera, que no meio estava a virtude, também ela se sentia a mais virtuosa das irmãs. Filipa, mais velha cinco anos, tinha um cabelo louro e encaracolado, olhos castanhos muito claros e era pouco tolerante às vontades femininas. Cortava o cabelo bem curto para ofensa do pai e dizia-lhe querer dedicar-se à agricultura. Matilde, a mais nova, tanto na idade quanto na tenacidade em quebrar a autoridade dos pais, trazia a vivacidade no olhar e a teimosia na ponta da língua. A sua casa, construída num terreno de declive acentuado, no sopé da colina onde se edificava a aldeia, tinha uma magnifica vista para o vale onde o rio serpenteava entre choupos que cresciam urgentemente vaidosos. No Inverno, a casa tornava-se fria e húmida e no Verão insuportavelmente quente. As promessas do pai em pintar a casa e comprar um ar condicionado, que tanta sufocaram a mãe, nunca foram almejadas. Maria ao ouvir um ruído no corredor, saltou da cama e correu para a casa de banho. Numa casa de mulheres, a rebeldia no uso da base de duche era intolerante e ela queria rapidamente retirar do corpo o sabor a sal e o cheiro a travesseiro. Enquanto escovava os seus longos cabelos escuros, observava-se ao espelho. O nariz afilado e as enormes sardas que o verão fazia despertarem. Colocara o vestido azul-escuro com florzinhas brancas estampadas. Sentia-se cada dia mais bonita, mas a sua ansiedade crescia na proporção da sua beleza. A mãe chamou-as para tomarem o pequeno-almoço e quando o fazia, nenhuma se demorava a corresponder ao chamado. Isabel era uma mãe austera, desencantada com a sua diletância desestruturada. Vivia na ausência de apego e na arrogância da sua agonia. Maria não balbuciou nenhuma palavra quando viu o conteúdo da sua caneca. Novamente leite com chocolate, o mesmo que lhe provocava vómitos e deixava-lhe o estomago numa cumplicidade exacerbada com a sua boca. Estava disposta a reclamar mas conteve as palavras quando centrou o olhar nos grandes olhos azuis de Isabel. A mãe estava de mau humor e não adiantaria refutar. Certamente que o olhar colérico se devia ao comportamento de Eduardo. O pai não demonstrava nenhuma sensatez perante um tinto e na véspera o jantar tinha sido entre amigos. Adegas e churrascos em noites quentes de verão incentivavam a loucura de Eduardo. Bebericou o leite, comeu avidamente as torradas com manteiga e levantou-se. Lavou a sua louça enquanto as irmãs ainda comiam pausadamente e disse à mãe que ia a casa de Lisete, a vizinha. Não seria a irritação da mãe que lhe iria roubar a alegre angústia que lhe percorria o corpo. Os espanhóis chegariam nesse dia. Lisete era a avó excêntrica que qualquer criança pretendia ter. Aos 70 anos, usava cabelo louro canário, andava sempre maquilhada, de unhas cuidadosamente arranjadas e naquela manhã envergava uma saia comprida plissada num tecido estampado a combinar com umas sapatilhas pretas e vermelhas de missangas que ela dizia comprar na Rua Morais Soares em Lisboa. Ao canto da boca trazia a cigarrilha. Lisete era viúva e tinha apenas um único filho, que tal como seu marido, se chamava João. O marido, tinha sido um conhecido músico dos anos 60, com uma carreira brilhante. Viveram em vários países europeus enquanto João divulgava a sua banda. Mais tarde assentaram moradia em Tânger e antes de regressarem a Portugal viveram uns meses numa bonita vila da ilha da Madeira. Anos volvidos, cansados da vida bucólica de Lisboa, decidiram construir uma pequena casa ao lado da casa dos pais de Maria. A excêntrica Lisete sempre que abria uma das suas inúmeras arcas de roupa oferecia a Maria um dos seus vestidos antigos, de brilhantes e lantejoulas, confecionados numa modista em Espinho, dias antes do marido tocar no casino dessa cidade. Sempre que ia ao El Corte Ingles em Lisboa, muito na moda nos anos 90, comprava-lhe rebuçados violetas, tanto na cor quanto no formato. Fazia-lhe açorda de tomate e ovos à espanhola sabendo ser dos seus pratos favoritos. Lisete carregava-a de mimos, mas sobretudo enchia-a de contos e fábulas, tais eram as histórias da sua vida e, fazia-a sonhar com uma vida para além da pequena aldeia onde vivia. O filho, além de herdar o nome do pai, herdou também a apetência para as notas musicais. Era músico, com uma sólida carreira em Madrid, casado com uma bonita espanhola, alta, morena, sempre fabulosamente maquilhada e vestida com quem tinha três filhos. Regressavam a Portugal, todos os anos para fazerem férias em família naquela pitoresca aldeia no topo da colina emoldurada pela serra. A euforia que se sentia pela presença destes estrangeiros num povoado tão pacato e pequeno, era sinónimo de edital, não daqueles no largo do fontenário onde constavam as informações de cortes de água nas manhãs de domingo, mas daqueles afixados na mesa redonda do café, onde a vida de toda a população era esmiuçada e escrutinada pelas pseudojornalistas de bairro. Estavam ambas sentadas à mesa da cozinha a sonharem com o bulício dos casinos quando tocaram à campainha. Maria e Lisete levantaram-se apressadamente e em passo acelerado dirigiram-se à porta. Haviam finalmente chegado. Lisete abriu a porta com sorriso rasgado e comoção a gritar-lhe no olhar. Jonito, como carinhosamente era apelidado, abraçou a mãe com ternura. Os três netos gritavam entusiasmados pedindo o abraço da avó e Luísa, no seu ar altivo, sem demonstrar qualquer ponta de emoção, mantinha-se atrás do marido e dos filhos. Aquele lugar estava longe de cumprir os requisitos de uma boa estancia balnear. Não fossem as insistências do marido e dos filhos, Luísa estaria agora num hotel, a apanhar sol junto de uma piscina.Maria, que até então se tinha mantido atrás da porta, juntou-se a eles. Embora entusiasmada com a chegada, já não os via há um ano e as mudanças eram notórias. Lee, a mais velha dos três irmãos, tinha herdado o nome da avó, mas aborrecida com a falta de originalidade dos pais, exigia ser apelidada pela curta sílaba. Estava muito alta, com um peito notável para os seus quinze anos, causando inveja a Maria, e aparentava estar mais loura do que se recordava. João, o único neto rapaz, mais uma vez provando a falta de criatividade familiar, intitulava-se de Tato. Dessa forma julgava ter mais sorte com as miúdas. Mantinha o mesmo ar de malandro, irresistível e cheio de charme para os seus curtos catorze anos, tantos quanto Maria. Ana, era a mais nova, transpirando rebeldia, carregava uma madeixa vermelha na cabeleira morena e o pescoço envolto em quinquilharia. Dizia chamar-se Cuca. Se ambos os irmãos tinham alcunhas, também ela assim o desejava. O primeiro impacto foi tímido, um ano de ausência acalmou-lhes a intensidade do discurso, mas no final do dia já rolavam nas suas bicicletas, em direção ao rio. Um ano depois mantinham-se as mesmas crianças de outrora. O calor que se fazia sentir era tão intenso, que para aplacar o efeito da elevada temperatura nos seus corpos, nada melhor que a água gélida do rio, o mesmo que lhes serviria de companhia nas semanas seguintes. Diariamente, Maria, as irmãs, os espanhóis e outros tantos miúdos da aldeia, mergulhavam da ponte que atravessava o rio, lançavam-se do frondoso choupo junto à adufa, em alucinadas piruetas e parecia que o tempo não os satisfazia. Maria, incentivada pelo fascínio da língua, pediu aos irmãos para lhe ensinarem espanhol. Atrapalhava-se na forma como tinha de posicionar a língua para conseguir articular as palavras, sentindo-se uma cobra a sibilar. Todos se riam da sua falta de jeito, mas Maria era muito perspicaz e cheia de tenacidade. Desejava aprender aquele idioma cantado e contorcido para conseguir entender as brigas deles. Embora os irmãos falassem muito bem o português, sempre que possível e sobretudo quando irados, atacavam na língua materna com grande agilidade deixando-a posta de parte. As semanas foram passando delicadamente e Julho já se fazia demorado. Os dias, sempre iguais distribuíam-se entre banhos no rio, festas ao som do antigo rádio de cassete de Lisete e jogos de cartas, à hora de almoço, na mesa da sociedade, como simpaticamente era designado o café da aldeia. Numa quinta-feira, num dia de sol e calor como tantos outros, uns sentados na ponte, outros pendurados no choupo e mais uns tantos dentro de água, entre assobios e guerras de água, a felicidade estampada no rosto das crianças e adolescentes era notória. Entre gritos de alegria ouviram ao longe a sirene de uma ambulância. Só quando a mesma, em serviço de urgência subiu a ladeira da aldeia se mantiveram curiosos com o sucedido.
Alice, uma das muitas habitantes de meia-idade daquele povoado, conhecida pelo esplendida forma como era detentora do conhecimento de todos os mexericos da aldeia e arredores, apareceu junto do aglomerado juvenil em aclamados gritos. Lisete, não imaginara que a má sorte, da qual não era habitualmente acometida, a tinha vindo bafejar.Todos saíram do rio à pressa, numa corrida tumultuosa pelo acesso à margem e, em procissão subiram a ingreme ladeira em passo acelerado, ao contrário das tardes anteriores em que se demoravam a subi-la dado o facto de terem o tempo como companheiro. Quando Maria avistou a mãe a chorar, debruçada junto do muro que separava ambas casas, percebeu que algo de muito grave havia sucedido a Lisete. A mãe só demonstrava a sua humanidade perante a morte, e essa já se sentia no ar. A ambulância tinha partido mas Jonito permanecia encostado ao portão da garagem com olhar perdido. Lee, Tato e Cuca, envolvidos no abraço galinha daquela grandiosa mãe, estavam perplexos. Viu-os desaparecerem dentro de casa e a porta a ser fechada. Durante horas esperaram por notícias. Os habitantes da aldeia concentraram-se em vigília junto da casa da Lisete e Maria ia espreitando pela janela da sua sala para ver se encontrava alguma novidade naqueles olhares. A mãe advertira-a de que naquele momento teriam de respeitar a família de Lisete e esperar pacientemente em casa. Sentia o coração apertado e a boca seca, algo lhe dizia que aquela noite de verão iria ficar para sempre registada na sua memória. Quando a noite se adensou, Jonito, entre soluços confirmou a notícia da morte de Lisete. A mesma ecoou nos quatro cantos da aldeia e Maria podia jurar que nessa noite ouvira os lobos a uivar na serra e os galos a cantar à meia-noite. A vigorosa senhora que tanto admirava tinha um coração desorientado, que se desligou num caloroso final de dia de Verão após uma tarde de beberetes e cigarrilhas ao som do radio de cassetes. Morreu da mesma forma como entendeu a vida, plena de fulgor, rebeldia e urgência. Depois das formalidades que um luto acarreta, a casa da vizinha foi fechada e os netos partiram. O fascínio que aquela família, tão bizarra quanto deliciosa, causava na aldeia do Casal da Tormenta, extinguiu-se naquele verão. Maria, tal como o nome da aldeia, também se sentia numa tormenta, diante do desamparo sentido. As excentricidades daquela senhora que considerava avó e a euforia das loucuras de verão junto daqueles três irmãos para sempre estariam desaparecidas. Durante aquele verão e muitos outros que se lhe seguiram, Maria derramou lagrimas soluçadas pelas memórias perdidas e por aquelas ainda não recolhidas, mas sobretudo pela certeza de que nunca mais sonharia com passados nem futuros apenas a ela confiados e por deferência selados. Guardou com carinho as suas memórias e hoje, quinze anos depois da morte de Lisete, sempre que retorna à sua aldeia, olha o decrépito quintal vizinho, completamente desprezado e apenas vê crianças felizes, a dançarem ao som de um radio de cassete antigo, vigiadas por uma gargalhada contagiante entre bafos de cigarrilhas.
Silêncio
Desperta, como todas as manhãs, cansada. Sente o coração acelerado, o corpo dorido e a cabeça pesada. A casa está imersa num silêncio absoluto. Olha o relógio constatando que é ainda madrugada. Sabe que dificilmente voltará a adormecer. Fixa a atenção no som dos ponteiros do relógio. Sente-os a vibrar no interior da sua cabeça. Procura encontrar a cadência entre os mesmos e o pulsar do seu coração. Os pensamentos agitam-se e pressente uma crise de ansiedade pelo fato de saber que a dança paulatina dos ponteiros irá representar a passagem das horas. O Pedro ressona agora na sala. O trabalho na fábrica e as aulas do curso de gestão drenam-lhe energia. Sente-o cada dia mais longe. O cansaço e as obrigações prosperam à mesma intensidade que a desunião. Ele adormece no sofá da sala, todas as noites, e ela sente-se só. Nem sempre solidão e tristeza percorrem caminhos conjuntos, mas combinam-se em absoluta sinergia.
Respira profundamente para acalmar. Sente o calor dos lençóis macios e começa a esfregar os pés, um no outro. Mantém o mesmo vício de criança que parece sossegá-la. O coração bate agora menos intensamente e continua a respirar fundo. Coloca a mão no seu coração e sente-o. Liberta gradualmente o cansaço e encontra a vida. Enquanto agradece, o pássaro começa a cantar. Há dias que fez morada na árvore em frente ao quarto. A melodia na madrugada, assim poderia ser descrito o canto apressado do animal. “Será isto a gratidão?”- pensou. Mas, o canto rapidamente cessa. Os animais pressentem o perigo, e esse está bem perto. Os seus dóceis felinos são agora dois predadores a tamborilar junto da janela. Vê-lhes os olhos na penumbra. Todo o corpo vibra instinto de caça e prevê-lhes o pulsar da energia a percorrer as vísceras. Soltam um gemido, também eles queriam ser livres. O pássaro voa e a voracidade dos felinos abranda. Saltam para cima da cama à procura das mãos da protetora. Ronronam solicitando mimos. Também ela precisa de carinho para se sentir mais aconchegada, mais nutrida de amor. Um aninha-se junto dela, aquecendo-lhe o corpo e a alma, o outro, mais rebelde, afasta-se para se esticar, no lado vazio da cama. Ambos os felinos adormecem ao som do próprio ronronar. O ruidoso relógio de corda do vizinho começa a tocar. E ao som das badaladas ela retorna à infância. Ao cheiro a café de cevada e pão caseiro, ao calor dos lençóis de flanela, à lamparina de azeite a queimar no corredor e ao bater do pêndulo anunciando a hora de levantar. A avó aguardava-a com um terno abraço e um beijo perfumado de água-de-colónia, pela madrugada. Doces memórias perdidas na imensidão do tempo. Horas que já passaram. E regressa ao presente. Sabe que daí a uma hora o relógio do vizinho tornará a tocar e ela ainda estará enrolada nos lençóis, aquecida pelas suas duas mantas de pêlo. Decide que durante essa hora retornará a viagem ao passado, pois não existe nada mais gratificante do que recordar o sorriso de quem amou e as histórias que viveu. Espera então mais uma hora. Espera o tempo necessário, pois é na madrugada que se sente sempre sozinha.

Prazer
Não consigo descrever em palavras o prazer do cheiro da maçã antes de trincá-la. Pego numa faca de cabo de madeira de gume afiado e espeto-lhe a ponta na carne. Penetro-a fundo e numa dança efusiva entre as mãos e o alumínio do utensílio, retiro-lhe toda a casca vermelha brilhante. Sinto-a despida e húmida enquanto a mantenho nas mãos. Corto-a ao meio, retiro-lhe o pedúnculo castanho e todos os caroços, ferozmente abrigados no seu interior. Nunca gostei de adornos, na fruta ainda menos. Levo-a aos lábios, sinto-lhe a sua textura áspera e o doce da carne. Trinco-a, e enquanto me deleito com o seu sabor sacarino, inebrio-me com o mesmo aroma acutilante das tardes de trovoada de Verão, junto ao rio.

Pecado
A avó Luísa alimentava a vida com provérbios populares. Eu não lhe herdei a conjugação do verbo proverbiar, mas assumo a sua intenção. “Uma maçã por dia dá uma vida sadia”, frase comumente conhecida e disseminada para ironicamente estimular crianças a comerem maçãs enquanto lhes lêem a história de como a Branca de Neve caiu num sono profundo após sufocar com um pedaço de fruta tão sã. Não fosse o beijo do príncipe, ela nunca teria apreciado os seus maravilhosos benefícios. Verdes ou vermelhas, com pintas ou listas, enceradas, carnudas ou farinhentas, doces ou azedas, são conhecidas pelas suas inúmeras variedades. A minha preferida, Royal Gala, vestida de vermelho escarlate qual face ruborizada da vergonha em símbolo de pecado original. Se Eva cedeu à tentação mostrando a origem da imperfeição humana, também eu me sinto desumana quando a coloco na palma da mão e lhe tomo o cheiro a pecado.
Cinco Quartos de Laranja
A mãe sentiu o cheiro de laranjas durante todo aquele mês quente. Mais ou menos uma vez por semana, se bem que nem sempre tinha depois um ataque forte.” Março foi um mês excessivamente generoso em calor embora completamente desfasado no tempo da sua estação. As frondosas laranjeiras estavam agora despidas daquela fruta doce e sumarenta que deliciosamente comíamos enquanto enchíamos os cestos da campanha da colheita da laranja, agora já terminada. Eu e Renato cravávamos as unhas na casca grossa e luzidia sentindo o suco a respingar por entre os dedos. Retirava sempre o excesso de fios brancos, aderentes aos gomos, evitando que depois de prendessem entre os dentes. Nunca gostei de trincar alimentos providos de fios semelhantes a teias de aranha. A laranja estava no mesmo patamar do bacalhau, do diospiro, dos quiabos e do alho francês. Escrutinar o interior da boca após a refeição era sempre motivo de angústia. Mas o sumo que delas espremia, com as mãos pegajosas, apaziguava-me a fome e o desejo. Renato era um rapaz moreno de olhos escuros, de corpo bem definido para os seus modestos 16 anos. Cheirava a mel. Sempre me deleitei com aquele líquido rejubilante produzido por uma rainha, tal como me sentia quando Renato me olhava penetrantemente. Coroada. Tinha o ávido desejo de lamber a colher sempre que adoçava o chá de salva que a avó Maria me fazia para acalmar as dores de estomago. Não sabia aquela terna avó de cabelos grisalhos e cheiro a arroz doce, que o meu vazio estomacal se devia à ausência de uma pele morena e ao excesso de líquido laranja sugado para apaziguar a alma. Eramos uns adolescentes em busca de arrecadar alguns trocados para gastar nas festas de aldeia, em Julho, quando o calor de verão se instalava e perdurava. Por agora, o excessivo calor de Março ou era obra de um santo alheado ou obra de um diabo astuto e inebriante de cabelo preto e liso que sufocava quando nele reconhecia o olhar de ânsia e lascívia. Os dias de campanhas, embora pesados na saturação do ar ambiente e nas dores de ossos perante a carga alavancada, não comportavam horas suficientes para acalmar o meu olfacto e paladar, outrora perdidos, agora despertos. No final do dia de trabalho, quando regressava a casa, a avó Maria tinha já o chá quente adoçado com mel à minha espera para me aliviar o mal de estomago e do coração e a minha mãe, a pedra pomos para me esfregar as unhas e a carne, como quem tenta arrancar as escamas a uma boga. Há anos que o cheiro a laranja lhe dá vómitos e lhe propicia ataques de pânico. A lembrança da sua juventude tão amarga quanto uma laranja verde, quando também ela se perdeu de amores nos campos da apanha, arranca-lhe gemidos enquanto me esfrega. É na dor que ela sente a morte dos sonhos perdidos mas é na minha dor que eu sinto a vida.
Amor
Quando se abrem gavetas contendo caixas antigas com papéis amarelecidos pelo tempo, folhas e postais de mensagens de amor, marcadores de livros ou porta chaves oferecidos nos tempos de beijos roubados às escondidas, corações acelerados e amargos de boca perante o púlpito da paixão, lembramo-nos de quão especiais são as recordações, as memórias e as saudades. Entendemos que a vida não é permanecer no passado, mas sim olhar o futuro sem nos esquecermos de quem fomos lá atrás. Almas moldadas pelo tempo conservando os ensinamentos que o mesmo nos ofereceu.
"They don't need any special date to send a loving rhyme", a frase escrita na capa de um bloco de linhas, encontrado dentro de uma caixa metálica antiga cujo conteúdo, se lê na lateral, amêndoas com cobertura de chocolate, da Jubileu. A falta de variedade de lojas e adereços para a casa de há trinta anos contribuía para a originalidade dos baús de recordações ou talvez a escolha fosse apenas resultante da consciência inconsciente de que as memórias têm um sabor tão delicado quanto o doce aroma do chocolate. Continuo sem habilidade para produzir rimas, ainda menos de amor, mas preservo a certeza de que não é necessária uma data especial para nos lembrarmos daqueles que amamos. Contudo, é escrevendo nessa mesma folha antiga, com cheiro a saudade que me recordo de quem é passado, presente e futuro. Quem é paixão, memória, saudade e amor ou simplesmente quem permanece para sempre no coração.

A tartaruga aventureira
O calor intenso que se fazia sentir naquela tarde de Verão era insuportável. Gritei pela minha pequena dona na esperança de que ela me socorresse, mas nem ela, o irmão ou os pais me ouviram. Estava tão magoada e com tanto medo que me escondi dentro da minha carapaça, confiante que a mesma me serviria de abrigo, enquanto via homens, mulheres e crianças a percorrer a calçada, na habitual correria diária para entrar e sair da estação de comboios, mesmo ao lado de nossa casa. Os gritos, as gargalhadas e as vozes altas que curiosamente escutava na segurança do primeiro andar, eram agora assustadores e temia pela minha vida. Há horas que permanecia sozinha e imóvel na calçada. Nessa manhã, ignorantemente havia imaginado que ao saltar da varanda da nossa sala, colocando as patas bem esticadas para fora da carapaça, a mesma serviria de paraquedas, no entanto, apenas comprovei que o seu enorme peso contribuiu para me despenhar. Embati com tanta força na pedra dura que estava muito dorida além de ter o orgulho bastante ferido. Contudo, para piorar a situação, necessitava urgentemente de água, o meu elemento natural. Na noite anterior, movida pela animação vinda da sala, saltei do meu aquário junto à janela do hall de entrada e avancei vagarosamente até àquela divisão para ver o que se passava. Os meus donos estavam a jantar com uns amigos e eu, com receio de que me vissem, escondi-me, primeiro debaixo do sofá, depois atrás dos cortinados, até que vi uma janela aberta e escapei-me para a varanda. Olhei para cima e fiquei maravilhada a contemplar as estrelas. Fui tão audaz e sorrateira que ninguém se apercebeu que havia fugido, nem mesmo quando fecharam a janela e apagaram as luzes. Adormeci ao luar esperando que me encontrassem no dia seguinte. Quando ouvi as suas vozes, pela manhã, a saírem de casa, acreditei que o melhor a fazer era ir ao encontro deles, mas o sentimento de invencibilidade ao experimentar a proeza do salto depressa se desvaneceu. Enquanto passavam as horas sentia a falta da minha família e da minha casa. Somos cinco. Os pais, os filhos e eu, a tartaruga de estimação. Todos me tratam muito bem, cuidando do meu aquário, dando-me comida e inclusivamente, esfregando-me a carapaça, para estar sempre impecavelmente limpa. No entanto, tenho uma afeição especial pela Matilde. É tão curiosa quanto eu, muito expressiva e doce mas também um pouco malandra. Tem uma voz melodiosa, a mesma que me fez acelerar o coração quando naquela tarde a ouvi gritar: “Mãe, está ali a Kika!”. Julgo que a mãe dela inicialmente me tomou por uma pedra, no entanto, devido à perspicácia daquela criança, encontraram-me. Com alguma dificuldade coloquei a cabeça e as patas para fora da carapaça comprovando que a minha família me tinha recuperado. O ar de Matilde demostrava alívio quando me colocou no colo. Após o regresso da escola, nessa tarde, quando deram pela minha ausência, haviam revirado tudo há minha procura, no entanto, apenas uma criança traquina compreenderia que uma boa aventura começa fora de casa, local onde seguramente eu não estava. Contou-me a pequena que quando me avistou, regressava do cabeleireiro, aonde relutantemente havia ido cortar o cabelo, perante a angústia de ter de cancelar a sua busca por mim. Felizmente que cumpriram a obrigação da hora marcada, porque se tal não tivesse acontecido, Matilde não me teria visto no regresso a casa e provavelmente eu teria morrido desidratada ou esmagada por alguém menos atento. Demorei a recuperar daquela queda. Durante muito tempo senti-me atordoada, talvez devido ao embate da queda, devido à desidratação ou quem sabe das saudades de casa e da minha família. Para me fazerem sentir melhor, compraram-me um aquecedor de água para estar sempre morninha e deram-me várias marcas diferentes da comida que eu mais adoro, camarões, mas sobretudo deram-me muitos mimos. Aos poucos fui melhorando mas continuei muito irrequieta, pois sou muito curiosa. Os meus donos entenderam a minha frustração e colocaram-me na sala, num aquário muito grande, onde agora posso ver tudo o que me rodeia. Por vezes a Matilde e o irmão brincam comigo. Colocam-me no chão e deixam-me fazer as minhas corridas vagarosas pela casa, libertando assim o meu lado explorador. Gostam de dar-me comida à boca mas também têm um pouco de medo de mim, pois não percebem que as mordidelas que eu inadvertidamente lhes dou, se devem ao meu instinto animal e não por maldade. Mas acho que com o tempo eles aprendem e eu também. Agora sou muito feliz e nunca mais me aventurei para fora de casa, já não tenho motivos para o fazer pois compreendi o tamanho do amor que tenho a esta família, para sempre minha e o quanto eles também gostam de mim. E essa é a verdadeira aventura, o amor que nos une!
Gratidão
Quando era miúda, se a palavra "obrigada" não fosse criteriosamente esculpida em todas as frases de pedidos ou sibilante perante agradecimentos de ofertas, os olhos da minha mãe (juro) inchavam, a boca contraía-se e o sobrolho enrolava-se de tal forma que, tantos anos depois, ainda sinto a angústia a percorrer-me o corpo perante medonha fisionomia. Forçada no seu uso ou cativada pela sua graciosidade, o facto é que continuo a frisar o adjetivo. Acrescentei ao seu significado, além da delicadeza do tom e da imposição do gesto, o verdadeiro motivo para agradecer diariamente. Respirar. Dar um mergulho no mar. Sentir a neve a gelar os dedos. O calor da lareira acesa. Dar colo a uma criança. Subir a serra. Rir à gargalhada. Comer avidamente uma fatia de bolo de chocolate e frutos vermelhos. Fazer festas aos gatos. Dançar. Comer queijo fresco com marmelada e beber café de cevada. Encher uma jarra com bonitas flores. Sentir os pés descalços na areia ou na terra. Pegar num lápis, num pincel, numa tesoura, em linhas ou cordéis, e criar. Abraçar uma árvore. Abraçar aqueles que amo. Agradecer por estar viva, a verdadeira bênção da palavra gratidão.

2020
Talvez tenha sido o ano de uma imensa solidão. Não no sentido perjurativo da palavra, mas na quantidade de horas decorridas entre quatro paredes sem qualquer diálogo efetivado. Ainda assim recordo-me, com convicção, que já vivi maiores solidões entre multidões. Esta apenas teve o gosto amargo da ausência de afetos e de medos extrapolados. O passaporte caducado não foi renovado, os carimbos nos cartões dos restaurantes como prémio da assiduidade deixaram de ser impressos, o guarda roupa não foi renovado, a compra de bilhetes para cinema, teatro ou concertos foi completamente abolida, a necessidade da ida ao médico e a realização de exames itinerantemente revogadas e os almoços, lanches e jantares com os amigos e a família colocados em modo "voo". Em retrospetiva, 2020 aparentemente assume a devastação individual e coletiva, física e psicológica. Mas existem sempre duas faces de uma moeda. E se durante o ano que passou, assumi maioritariamente o uso de fato de treino, ganhei barriga de horas sentada ou se chorei pela ausência agudizante de um abraço também criei laços profundos e eternos com determinadas pessoas, renovei amizades antigas e perpetuei as mais recentes, voltei a fazer longas caminhadas diárias, dei vida aos cordéis de macramé outrora esquecidos no fundo de uma gaveta, peguei novamente numa caneta e direcionei-a para um caderno em branco dando uma nova forma às palavras, consegui educar os meus filhos peludos e endiabrados, dei nova cor e vida aos móveis e janelas das avós, esquecidos no sótão e atraiçoados pelo bicho da madeira e fui presenteada com os meus dois M&M, ambos nascidos a 17, apenas com uns meses de intervalo, mas eternamente gravados numa data para sempre minha. E como as crianças dão cor à minha vida, as minhas amigas do coração, presentearam me também com sobrinh@s. E quando a mãe da Francisca lhe pergunta, depois de lhe ler uma história sobre a importância do Abraço, quem é que ela quereria abraçar e ela responde, a Vanda, sinto que embora pequena devo ter alguma importância na vida das pessoas, sobretudo na destas crianças. 2020 não me deixa saudades, mas deixa me certezas. Certeza de querer manter algumas pessoas na minha vida para sempre, certeza no esquecimento daquelas que não quiseram ficar e certeza que tenho colo, abraços e beijos em fila de espera, na esperança de que num futuro próximo os possa espalhar. Com amor, porque não conheço outra língua que não a dos afetos e não sei escreve-la de outra forma sem ser com o coração.

Viajar
O verbo este ano foi difícil de conjugar. Se no passado existiu pressa em percorrer um mapa e traçar uma rota, no presente apenas existe a saudade de escolher um local sem receios ou preconceitos. Viajei, viajo e viajarei entre cidades, países e continentes com a sede de conhecer novos povos, tradições, gastronomia, costumes, fauna e flora. A sede de conjugar o verbo mantém-se e permanecerá como o rio que corre em direcção ao mar, a fluir incessantemente. E na conjugação mais nobre da palavra, em lugares como este, quando os dedos das mãos enregelam com o clique da foto, o sangue deixa de afluir aos pés e o corpo se torna dormente, sentimos a vida. Às vezes é preciso cair num estado de dormência para de seguida sentir o ressoar daquilo que temos de maior importância, a Vida. E assim viajo...

Chuva
Choveu. A madrugada acordou a chorar. As lágrimas são sempre necessárias. A catarse é bem vinda mesmo quando se ouvem murmúrios de tristeza, porque a madrugada quer se bela e cheia de luz e não há vida sem morte, não há crescimento sem dor. E entre os gemidos das lágrimas, o sol ainda que envergonhado, desperta. Saio. É na natureza que vejo melhor a minha alma. Muitas árvores estão despidas. A caducidade da sua espécie torna-as desenvergonhadas. O verde das ervas, agora a pespontar, contrasta com o mar de folhas que cobrem as estradas de aguarela dourado e cor de fogo. Encontro as amoras, os cardos e os óregãos secos. Definhados. A cor não os enaltece, nem tão pouco o aspecto. Castanhos, derrubados, apodrecidos. Gritam pela mudança de tempo. Procuro os trevos imperfeitos. Também eles soltam lágrimas. Gosto de contemplar estas plantas menosprezadas por não serem augúrio de boa sorte, nem em número nem na semântica. Rebentam os primeiros malmequeres. Amarelos e brancos a tentar resgatar o seu caminho e a desenhar a sua força por entre os densos verdes campos. Os cogumelos pintam-se de branco, castanho e amarelo. São chapéus de praia, de palha ou de chuva. Pecam pela sua inconstância. Mostram o seu lado rebelde e envolvente, mas são uns dissimulados. Num dia clamam devoção, outro dia clamam desinteresse. Os pássaros chilream de galho em galho. Debato-me entre preparar a máquina e congelá-los num simples clique. Não sou ágil o suficiente para tamanha urgência. Sinto pingos de chuvas a molharem-me o rosto avisando a hora do regresso. Não quero ir ainda. Faltou-me o musgo. Ainda o procuro, não para o arrancar do seu tufo, porque não vivo de extinções, mas para reviver o cheiro a café de cevada, a filhoses e coscurões. Já não tenho a recompensa caseira por cometer um crime esverdeado, amorfo e macio mas quando o encontro, regresso a casa com o sabor doce da infância. Chove. Cada vez mais. Aperto o passo e chego a casa. Foi na natureza que encontrei a minha alma.


Perspetiva
Todos nós já passamos situações difíceis. Uns mais do que outros. Mas esta é a perspetiva de cada indivíduo. Há quem esteja sempre pior do que nós. Não deveríamos antes fazer o exercício contrário? Ninguém vive o lugar do outro. Aquilo que para mim é um problema gigante, para o outro é uma trivialidade. Tudo depende da perspectiva. Sempre. Por isso, definir o que é ou não difícil, depende da forma como vemos o mundo, a intensidade com que o sentimos, da nossa capacidade emocional e o modo como nos estruturamos. Não conhecemos o sentimento que percorre o interior do outro. Há quem ria para o mundo e sofra imensuravelmente. Há quem tenha o coração dilacerado e ainda assim encontre força para ressignificar a vida.
Depende sempre de nós. Por isso, sejamos brandos com o próximo, não fazemos a mínima ideia daquilo que lhe percorre a alma.
Mudanças
As grandes mudanças que sofremos. As grandes mudanças que descrevemos.
É impressionante como palavras curtas conseguem definir a narrativa da nossa vida. Como conseguem descrever o curso dos acontecimentos. Três gerações. Definidas por pai, filha e neto. Acontecimentos como AVCs ou bebés. Sorrisos e perversidades são já palavras mais longas, mas muito adequadas a seguir às curtas. O pai perdeu a vivacidade e intempestuosidade que o caracterizava. A palavra curta que o passou a definir nos últimos 3 anos roubou lhe a destreza física, no entanto, ainda conserva a mental bastante aguçada. Sobretudo no que toca a piadas picantes. Nunca esboça um sorriso digno de foto quando a pretendo captar, mas descobri o método eficaz para o fazer não sorrir, mas rir à gargalhada. Há caminhos que os neurónios nunca deixam de saber percorrer. E a filha, que adora este pai meio lunático, meio genial e meio insuportável adora o riso dele. Como sempre, encontro-os com roupas, não diria deploráveis, pois são de trabalho, mas difíceis de engrandecer uma foto numa moldura. Mas há algo que nunca se imprime numa folha, seja ela de papel fotográfico ou não. A alegria dos momentos. Captamo-los para evitar que a mente nos faça esquecê-los, mas nunca captamos a essência do momento. Essa, vivenciamo-la. E a essência deste momento, para mim, foi ver que com tão pouco e com tão breves minutos conseguimos criar uma corrente de amor e alegria. O pai é um tanto difícil e a filha um tanto de distante. Beijos, abraços e palavras fofinhas nunca foram as suas melhores características. Essas seriam definidas com palavras mais longas e textos mais estruturados. Quanto a mim, a melhor palavra para os definir será curta contendo apenas quatro letras. MEUS.
O meu pai. A minha mana. E o meu sobrinho. E não há palavra melhor para definir o significado de os ter.

Família
Foi uma das fotos mais bonitas que tirei durante a quarentena. A minha família, um bonito pôr do sol e a nossa serra. Teria sido a foto mais bonita não fossem os maravilhosos trajes do meu pai e da minha irmã. Já não estavam dignos de capa de revista, mas o boné laranja fluorescente do meu pai, queimaria qualquer esperança de ver reconhecido o meu trabalho. Mas roupa à parte, a beleza da foto está na sua essência. O amor entre um pai e uma filha enquadrado numa bonita paisagem. Ela diz que não conhece melhor homem e ele, embora não o diga, secretamente, reconhece aquela filha como a sua obra prima. O meu pai nunca andou de bicicleta com as outras filhas, nunca foi às compras ou as levou a passear aos domingos. A minha irmã conseguiu isso e muito mais. Venceu-o pelo cansaço e ele deu-se por vencido com a insistência. Se existe mérito na vontade de alcançar um propósito, a minha irmã merece vários prémios. A criança mais chata, persistente e indulgente conseguiu mudar o homem que vivia para as fazendas. Prova de que, independentemente da idade, quando existe paixão e vontade, tudo se transmuta. A paciência que ele entendeu que era passível de ser alcançada, ela entendeu como o grande amor que aquele pai tinha por ela. Não houve espaço ao ciúme. Não tenho qualquer dúvida que a minha irmã foi o grande presente de natal que a família precisava, sobretudo para o meu pai. Ela mudou-o. E ele fazia-lhe todas as vontades. Os anos mudaram-na a ela. A criança é agora a mulher que se satisfaz em realizar as vontades do pai. Os papéis inverteram-se mas a essência é a mesma. Poderiam até estar vestidos com o melhor fato que a beleza do momento seria ver o amor que os une. Agora é ela que o ajuda a alcançar o que ele deseja. Agora é ela que tem paciência para o levar a passear.
Se pudéssemos emoldurar sentimentos, este seria um deles. Uma grande moldura daquilo que move o ser humano. O Amor. A essência. E como diz o célebre Antoine de Saint-Exupéry, "só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos".


Ilusões
As ilusões de menina. Príncipes, cavalos brancos, flautas, harpas e violinos, beijos encantados e um viveram felizes para sempre. The End.Como eramos inocentes...
Em criança, eu e as minhas primas partilhavamos o sonho de casarmos no mesmo dia, ir de lua de mel para a Madeira e depois irmos viver para o Canadá. Não faço qualquer ideia do motivo que me levava a querer emigrar, talvez o mistério de algo que não conhecia e que se apresentava como inatingível, mas de facto, conspiramos muitos anos para satisfazer o nosso sonho. Não se realizou. Como outros tantos sonhos. Nem tudo é materializável, por isso não passam de enredos que a nossa mente nos apresenta. Mas é tão bom sonhar! Hoje ainda me recordo com ternura daquelas nossas fantasias de crianças. Mas a criança torna se um adulto. E se o desejo de casar era tão grande em miúda, encolheu se de tal forma que, em adulta, provoquei a ira da minha avó quando lhe comuniquei que havia adquirido um apartamento e que ia viver com o meu namorado. Estado civil, "Amigados". Embora a minha avó o tenha pronunciado com uma pequena dose de malícia, até considero o termo bastante distinto. Se não vivermos o amor com base no sentido nobre da amizade, nunca teremos um relacionamento. Sete anos de namoro, após os quais iniciei uma fase de "amigados", por mais oito anos. Decidimos muitos anos depois, que tínhamos de assinar o papel para deixarmos de nos tratar por namorados ou companheiros. Chamar de minha mulher até não soa mal, mas dizer o meu homem, já conduzia ao rufar dos tambores para a patetice da expressão. Marcamos a data para fazermos um rabisco num papel, pago a peso de ouro. Lavrar contratos acarretam obrigações monetárias. Mas esse nem foi o maior gasto. Quando começamos a somar quinta, flores, decoração, vestido, fato, cabeleireiro, esteticista, bouquet de noiva, música para o bailarico e lua de mel, vimo-nos a olhar para as poupanças e fazer contas de cabeça. Mas como vale sempre a pena sonhar, sonhei tanto que, imaginei um casamento pequeno, com um núcleo mais familiar e uma lua de mel na Riviera de Antalya, Turquia. Tudo muito bem estruturado na minha cabeça. Mas a vida nem sempre nos permite concretizar os nossos sonhos. Fiquei doente e muitas vezes ponderei cancelar tudo. Aliás, muitas vezes julguei que havia a possibilidade de nem usufruir da data, muito menos da festa. Tudo o que havia planeado foi alterado, mas cheguei viva à data e casei. Com 10kg a mais desde a primeira prova do vestido, motivo pelo qual em todas elas tiveram de o emendar, inclusivamente na véspera do casamento. Entre ir num espartilho sem conseguir respirar ou esperar duas horas pelo alargar das costuras, escolhi a segunda opção. O núcleo familiar, estendeu-se ao núcleo de amizades. O cabelo, maioritariamente falso, mas habilmente disfarçado pela minha cabeleireira. A mesma, que durante 5 meses me deu tanto carinho, para que o pouco cabelo existente, se mantivesse o suficiente para por em prática o penteado idealizado por ela. E a falta de lua de mel. O único ponto que foi revertido no próprio dia, foi o local do casamento. Queria imenso casar no jardim da quinta, com o tapete vermelho até ao altar, mas na véspera desabou um temporal tão grande que parecia estarmos no Inverno. O dono do espaço disse me que nada havia a fazer. Teria de casar dentro do edifício. Julgo que pedi tanto ao S. Pedro durante a noite, que pelo menos no que toca à meteorologia, algo soprou a meu favor e amanheceu um maravilhoso dia de sol. Casei no jardim, com a passadeira vermelha. Relativamente à lua de mel, até à véspera do casamento havia uma névoa de incerteza e só os exames médicos poderiam ditar se ficava sossegada em casa ou não. Não estavam muito favoráveis mas o médico que me acompanhou, aliviou as restrições impostas e permitiu me abrir portas à Europa. E se nenhum dos sonhos, de criança ou adulta, se concretizou, convém dizer que talvez tenha sido por um motivo maior. A vida não nos dá o que queremos, mas o que precisamos. E sem dúvida, que tive o melhor dia de casamento e a melhor lua de mel, na melhor companhia. Assinei o papel e "desamiguei-me" com o meu melhor amigo. Se a minha avó não estivesse já perdida no mundo dela, certamente teria batido palmas, por ver os incessantes subornos para me tornar uma senhora, bem sucedidos. Casei me com a melhor pessoa que conheço, que todos os dias me impele a ser melhor, que me incentiva a buscar a minha melhor versão, que tenta de todas as formas ver me sorrir e me enxuga as lágrimas que tantas vezes teimam em cair. Fui uma linda noiva, mesmo com uns quilos a mais e um cabelo falso, cujo noivo não teve qualquer dúvida em desposar. Hoje celebramos o sexto ano de papel passado. No total já somamos 21 anos de altos e baixos, de alegrias e tristezas, de amor e amizade. E quando me recordo do dia do casamento e da nossa "lua de mel", pela França, Bélgica, Holanda e Luxemburgo, em casa de amigos e familiares, julgo que nada poderia ter sido mais perfeito. Não precisamos ter idade de criança para nos sentirmos crianças. Provei isso no dia mais fantástico da nossa viagem. A visita à Eurodisney. Fui uma verdadeira criança a curtir as histórias da infância e a sonhar. E se existem momentos épicos na nossa vida, este foi um deles, o entardecer à saída do parque, quando em jeito de despedida, olhei para trás e mirei o palácio encantado da Bela Adormecida. A criança sonhou e viveu um conto de fadas. Nada poderia ter sido melhor.
Como diz Osho, "a vida é uma brincadeira. Divirta-se." Meu amor, pelo menos temos tentado!
Clichés
O maior cliché de sempre. A célebre frase de voltamos sempre onde fomos felizes. Mas essa é a maior verdade. Quem nunca revisitou um local de boas recordações? Outro cliché. Recordar é viver. Mas somos humanos e vivemos de recordações. Mesmo sem as procurarmos. Elas estão sempre à espreita para nos pregar partidas. Sou rapariga de viagens. Os meus pais tinham um candeeiro no escritório, ao lado do célebre telefone preto de disco, o qual dava algum charme ao ambiente de namoro vivido entre aquelas 4 paredes. Namorei muito ao telefone, a mirar um candeeiro em forma de globo e a pensar que não conhecia nada do mundo. Não fazia ideia que anos mais tarde colecionaria países no mapa mundo que tenho agora na minha casa. Mas embora viajar seja algo que me preencha, nada me ilumina mais a alma do que o regresso a casa. À minha serra. À minha terra. Ao meu rio. E se namorei ao telefone também namorei neste rio. Neste local. Fiz piqueniques. Saltei muito de uma árvore enorme, em piruetas parvas, sem pensar em cabeças partidas. A mesma árvore já não existe. O imenso arvoredo que escondia a malta também já lá não está. O caminho que percorriamos pelas fazendas alheias, e a ponte de madeira, que nos ajudava a chegar mais rápido ao local mais apreciado da zona já não existem. Os tempos mudaram. Os putos do agora gostam mais de jogos de computador que de mergulhos no rio, fruta roubada para o lanche e uns amassos para acalmar as hormonas da adolescência. Hoje regressei ao mesmo local. Afinal um dos maiores latifundiários do concelho é meu pai e o terreno agora é dele. Já não precisaria de fugir ao dono do terreno nem saltar a pontes. É só mesmo chegar de carro. E a melhor parte é que volvidos 20 anos volto ao sítio onde fui feliz, com a minha família. Com aquela que já é uma mulher a criar a sua família. Os tempos mudam, os locais mudam, mas voltamos sempre onde outrora fomos felizes. Agora ainda mais feliz estou, vou ser tia novamente e tenho a certeza que vou ser uma boa contadora de histórias. As minhas. E quem sabe se parte delas não serão vividas novamente neste local. O meu. O nosso. Choupal.

Espiga
Em criança sempre gostei imenso de colher flores do campo com a minha avó. O dia da espiga não era exceção. No entanto, quando íamos colher o ramo de flores também não eramos rigorosas na sua escolha. Se eu entendesse que uma flor rosa ou lilás combinava com os malmequeres amarelos, a avó não contrariava a neta. Sem dúvida alguma que além do significado da data e da colheita o verdadeiro sentido da procura era a companhia de ambas. E a nossa alegria. A minha, porque tinha imenso prazer em fazer ramos de flores e a dela, na possibilidade de me concretizar todas as vontades. E não é esse o papel dos avós? Fazer as vontades aos netos? O ramo colhido era colocado atrás da porta de casa dela. O pedido era sempre para que todo o ano existisse pão, azeite, dinheiro, saúde, amor e alegria. Também não éramos rigorosas na companhia. Se por algum motivo uma de nós não pudesse acompanhar a outra, a demanda pelo ramo estava assegurada. Uma de nós encarregar-se-ia de o fazer. Nos últimos anos de vida da minha avó, já não tive companhia. A demência é algo que quando surge destrói toda e qualquer memória, boa ou má. Continuei a manter a tradição e o ramo ganhou uma nova residência. A minha. No entanto, sou daquelas pessoas que acredita que a vida, embora repleta de coincidências, também nos brinda com conexões de alma. Algo inexplicável. Algo que não ocorre por acaso. E isso, sentimos com o coração. Comecei a visitar a minha avó, na casa de acolhimento que a recebeu, com a regularidade que me era possível, onde sei que foi muito bem tratada. As visitas eram estranhas, já não havia espaço para o diálogo. Ela não queria falar, apenas aninhar a cabeça no meu ombro e pedir mimo. A dura realidade de que somos crianças duas vezes na vida. Embora já nem a filha reconhecesse eu continuei a ser a neta. Nunca me esqueceu. E por isso sinto que o entendimento fosse além de palavras. Na última visita que lhe fiz, expliquei lhe que iria de férias para os EUA, por isso, iria demorar algum tempo até voltar a vê-la. Ela entendeu o meu pedido. Quinze dias depois, após regressar, às oito da manhã de um dia de férias e muito jet lag para recuperar, a minha mãe ligou me. Não precisava sequer atender para perceber que a minha avó havia esperado por mim. Partiu da mesma forma como viveu a vida, com pouco e sem alaridos. E claro que não poderia ter escolhido um dia mais bonito para o seu funeral que uma linda Quinta Feira de Ascensão. O ramo de espiga nesse dia foi para ela. E desde então a tradição mantém-se. Continuo a colher o ramo sem a sua companhia física, mas quando o amor é verdadeiro, nunca estamos sós. Não o colho com o intuito de pedir o pão, o azeite, a saúde ou o dinheiro. Colho-o pela alegria e pelo amor. O nosso propósito. Onde ele existisse, estaríamos nós, pois o amor não se explica.
